A biografia fragmentada de Pessoa

Demorou, são quase 1200 páginas e não há propriamente um enredo a puxar pela nossa curiosidade, não que fosse necessário dada a enigmática persona de Pessoa, e, no entanto, algo faltou. Zenith escreve de forma soberba, diria que ao fim de 30 anos a editar e traduzir Pessoa se aproximou muito do seu estilo. Mas esperava mais. Pessoa resulta numa das biografias mais realistas que li, mesmo que Zenith embelese descrições com imaginação, romanceando ações e desejos, fá-lo a partir do interior de um Pessoa que se habituou a conhecer como uma espécie de segunda identidade. No final, o realismo de Zenith dá-nos um Pessoa humano, para mim, demasiado humano. Não queria um herói, não precisava de nos dar o “Super-Camões”, mas o que é uma biografia se não a história que sustenta a razão pela qual a memória perdura?

O livro abre com um Prólogo excecional, com uma escrita irrepreensível lançando toda uma contextualização de Pessoa que nos agarra e faz sonhar, criando expectativas elevadas para o resto do livro. Contudo, assim que se inicia o contar da vida de Pessoa, a história cola-se às ações registadas, praticamente tudo o que é dito parece brotado de algum registo, seja de Pessoa, da sua família, dos jornais, amigos ou outros que com ele conviveram. Impressiona, demonstra um trabalho imenso de pesquisa, percebe-se porque demorou 13 anos a escrever, e mais do que isso, cria um registo que ficará para a posterioridade. Passo a passo, Zenith vai descrevendo tudo o que se conhece sobre o autor, ficando a dúvida se ousou deixar algo de fora, tal o detalhe sempre suportado.

Esta abordagem permite a muitos de nós conhecer melhor o Portugal do início do século XX, o fim da monarquia, o surgimento da República, a sede de renascimento artístico, as influências externas, a relação com a política inglesa e a cultura francesa, os movimentos da elite lisboeta, contudo fica a dúvida sobre quanto disso poderá interessar a não-portugueses. Por outro lado, o detalhe é tanto, existem tantos pontos relevados e discutidos que a figura de Pessoa acaba a perder-se por entre eles. Mesmo toda a descrição dos amigos de Pessoa envolvidos na criação dos vários projetos editoriais e de movimentos artísticos vai a um detalhe tal em que deixamos de ver Pessoa para ver o que era a vida naquele tempo no meio daquelas pessoas. Sendo relevante, e por vezes até interessante, o desfoque acontece. Pessoa nunca sai de cena, mas Pessoa é apenas mais um. Zenith assume um posicionamento profundamente realista, apresenta o homem enquanto homem, mas um livro destes não devia dar-nos apenas o homem, pois não é ele que robustece a imaginação de quem o leu e ousou sonhar com ele.

Zenith parece ter gizado uma missão, dar conta de tudo e todos aqueles em que Pessoa tocou, contudo com isso perdeu a hipótese de ir à essência do que fez de Pessoa a pessoa que fez tantos de nós apaixonar-se pela língua portuguesa. Porque isso não foi feito pelo simples ato de existir, de fazer coisas, de se relacionar com pessoas, de se relacionar com autoridades. Zenith esforçou-se por nos dar acesso a praticamente todas as facetas de Pessoa, não apenas os seus heterónimos, mas especialmente, as da sua personalidade, indo muito para além do que se tem lido como retrato geral do autor. Zenith dedica centenas de páginas aos seus traços mais negativos — o racismo, a misoginia, a homofobia, o alcoolismo, o nacionalismo, as dívidas, tudo rodeado de um enorme inconseguimento. Dito assim, em sucedâneo, parece que se construiu aqui o traço de uma persona-non-grata, contudo Zenith fá-lo com imenso cuidado, desvelando e justificando sempre em cada momento, raramente permitindo que os traços negativos contaminem a aura maior de Pessoa. O detalhe na apresentação destas facetas, com dados e perspetivas múltiplas, é de tal ordem que se torna possível acreditar que Pessoa foi o diabo e o santo, porque que tendo dito/escrito, nada disso terá passado da superfície, parte das suas múltiplas máscaras, nunca tendo tocado a verdadeira essência do Ser de Pessoa.

Ora se todo este mundo de provas e contra-provas serve para manter Pessoa imaculado, acaba fragilizando tremendamente a sua identidade. Ora é uma coisa, ora é outra. Mesmo sabendo que Pessoa passou pela vida exatamente dessa forma, daí os heterónimos. Pessoa foi tudo o que quis imaginar ser, sem nunca o ser, o que em defesa de Zenith, suporta totalmente a sua abordagem. Mas isso não deixa de lhe retirar poder, de cortar a ambição de querer chegar a uma persona interior, ao motor por debaixo de todas aquelas máscaras que nos faz sonhar de todas as vezes que abrimos um livro seu.

A parte final da biografia dá um espaço enorme ao esoterismo vivido pelo poeta, não foi o único, foi uma época terrível para a elite intelectual europeia que se deixou seduzir pela astrologia, espiritismo e sabe-se lá mais o quê. Mas fica-me a impressão de que Zenith tenta nesta parte do friso cronológico elevar a persona além do realismo por via dessas condições esotéricas. Talvez seja uma interpretação errónea minha, mas senti esse forçar do espiritual em Pessoa como a machadada final na depreciação da persona de Pessoa. Percebo a ideia, o mundo do paranormal é uma porta fácil para o incomum, o excecional, mas é também uma porta direta para a incapacidade crítica e analítica, algo que não combina com a agudez dos escritos de Pessoa.

E mais perto ainda da reta final, Zenith remata tudo com o nacionalismo de Pessoa, os seus textos em defesa do Estado Novo, de António Ferro e António Salazar. Não o faz sem mostrar como Pessoa compreendeu a determinada altura que tinha errado, que se tinha enganado totalmente, fazendo uma reviravolta de 180º. Zenith não podia não relatar tal, mas o problema não está aí, surge antes pelo modo como dedicou toda a sua abordagem a mostrar sempre o lado mau e bom, a construir e a elevar sempre o humano simples por detrás do grande poeta, falando do homem comum, esquecendo o artista. Mesmo quando em determinados momentos Zenith dá conta do “génio”, nomeadamente pelas palavras do próprio Pessoa, tal nunca é apresentado como efetivo, parece restar sempre uma sombra, uma dúvida sobre o tamanho dessa genialidade.

Como comecei por dizer, não queria um herói, mas escrever uma biografia é acima de tudo um trabalho de edição da vida de alguém. Quando se resolve nada editar, e a tudo dar o mesmo destaque, surge uma enorme manta de retalhos que dando conta daquilo que uma vida realmente é, não evidencia a pessoa que realmente foi. Todos nós em certas idades dizemos coisas que nunca diríamos passados 10 ou 20 anos, mudamos, crescemos, pensamos coisas negras que nunca diríamos a ninguém e que erradamente escrevemos em diários. Na verdade, somos muito mais do que a capa que continuamente editamos de nós mesmos. E se tudo isso nos pode aproximar daquilo que foi uma vida, as ações e atividades feitas ao longo de 47 anos, nem por isso nos dá uma noção mais completa de quem efetivamente foi, ou melhor, do que verdadeiramente representou e representa. Porque não recordamos tudo e todos, escolhemos quem recordamos, mas mais do que isso, escolhemos como recordar cada uma dessas pessoas que passou por nós. E porque o trabalho do historiador é mais do que descrever, é mais do que desenhar um friso cronológico e preenchê-lo de eventos, é também um trabalho de interpretação.

No final do livro ficou-me o trago amargo de uma biografia que foi ao extremo do pós-modernismo para demonstrar que o ser humano não tem qualquer relação com as clássicas narrativas lineares, ditas “manipuladoras”. Que o ser humano não passa de um conjunto de momentos desencontrados que se vão somando ano após ano, contribuindo para um todo que nunca deixa de ser um amontado de fragmentos. E no entanto, Zenith não deixa de seguir o elemento mais linear de todos, o tempo, sendo na verdade o único vetor consistente que usa para suportar todos aqueles fragmentos. Disse amargo, porque reconhecendo que somos feitos desses fragmentos, aquilo que continua a manter o meu interesse no estudo da narrativa é exatamente o modo como ela, e nós biologicamente dependentes dela, ignora todo esse acaso cósmico para continuar a oferecer-nos estruturas organizadas de informação que servem o exaltar do nosso pensamento e sentir.

Sobre as edições. A versão original foi publicada primeiro em inglês (2021), tendo eu lido pouco mais de metade nessa edição, ainda que na versão áudio com a belíssima narração de Nigel Patterson (42h). O restante foi lido na também belíssima tradução portuguesa dos Telles de Menezes (2022). Passando de uma versão para a outra, fazendo algumas comparações, não senti que nenhuma fosse superior, a qualidade do texto de Zenith mantém-se elevada e a leitura é extremamente fluída. Assim, se a minha crítica acima soa bastante negativa, a leitura do livro não deixa de ser uma mais-valia enquanto experiência, pelo que deixo aqui algumas ligações para outras análises, bem mais positivas, do Guardian e do New York Times.

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