Design de narrativa: tempo e interativade

“South Of The Circle” (2022) foi criado pelo pequeno estúdio britânico State of Play reconhecido pelo detalhe artístico que coloca nas suas produções, de “Lume” (2011) a “Lumino City” (2014). Com “South Of The Circle” vão aonde poucos videojogos costumam ir, produzindo uma narrativa dotada de personagens complexos com uma mensagem forte, tudo suportado em excelência de guião, diálogos e performances de atores, acompanhado por uma identidade visual única, minimalista cuidada. O lado não desta conquista, parece acontecer pela interatividade, ou a sua ausência, contudo mesmo aí requer um olhar mais atento ao design da narrativa. No final, a experiência de jogo funciona como um misto estético entre ilustração e animação, com uma estrutura e ritmo decalcados da banda desenhada europeia, composta por uma fineza narrativa capaz de impactar as nossas crenças.

A história é bastante instigante, nomeadamente porque se desenvolve em duas linhas simultaneamente: uma interna e outra externa. A externa centra a ação no auge da Guerra Fria, anos 1960, na personagem de um académico de Cambridge em início de carreira que trabalha para o governo. A interna, apresenta o debate sobre a carreira, as exigências para subir na hierarquia, confrontando-as depois com um forte traço cultural machista que tudo faz para manter as mulheres fora da academia. A implementação do todo é tão bem conseguida que em vários momentos quase me apeteceu bater nalguns dos personagens, pela sua arrogância, chauvinismo e machismo.

Toda esta emocionalidade, produzida pelo jogo, parece depois subaproveitada em termos interativos. A expectativa que se cria, impulsionada pelas convenções de jogo, é a de poder de algum modo intervir, aplicar alguma justiça, mas o jogo apesar de nos fazer crer que vai abrir espaço para o efeito, acaba por rapidamente o encerrar. Isto cria nalguns jogadores a sensação de engano, rotulando tudo de ilusão de interatividade. Contudo, quando analisado em maior detalhe, percebemos que o design de narrativa criado pela State of Play é mais inteligente do que isso.

Assim, não só nos movimentos entre duas linhas narrativas, como nos movemos em dois momentos temporais distintos. Grande parte das decisões internas que tomamos acontecem no passado, por consequência o seu efeito não pode conduzir a uma alteração do presente que acontece na linha temporal externa. As decisões que tomamos ganham assim uma dimensão distinta, referem-se mais ao modo como decidimos recordar as decisões que tomámos no passado, e menos à transformação dessas. Isto é tanto mais relevante quando joga com decisões sobre a carreira académica do personagem, envolvendo o modo como se partilham os louros do trabalho colaborativo realizado, indo ao fundo das estruturas societais da época, evidenciando os modos como se procurava rebaixar e alienar o contributo feminino para a ciência.

“South Of The Circle” é assim um videojogo importante, não tanto pela inovação na linguagem interativa ou pela inteligência no design de narrativa, mas especialmente pelo modo como usa o medium para expressar um conjunto de valores, obrigando-nos a refletir não apenas na sociedade de onde viemos, mas acima de tudo naquela que queremos hoje para nós e para os nossos filhos e filhas.

Versão jogada: Playstation 5.
Duração aproximada: 4h

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