Determined: A Science of Life without Free Will (2023)

Sapolsky resolveu, depois do brilhante Behave” (2017), juntar-se a Sam Harris, outro neurocientista, na defesa da inexistência de Livre-Arbítrio, mas efetivamente o que ele fez foi regressar às suas origens de behaviorista convicto e seguir as pegadas de BF Skinner, leia-se Walden Two” (1948). Nada disto surpreende porque já existiam alguns laivos desta convicção em “Behave”, contudo aqui Sapolsky simplesmente deixa cair a máscara. É pena que, e ao contrário de Harris, Sapolsky se atreva a escrever todo um livro sobre o assunto sem ter realizado qualquer estudo sobre os dois mil anos de discussão filosófica sobre o assunto, mas mais chocante é que o faça em 2023, ignorando mais de 70 anos de Psicologia Cognitiva. O livro que esteve cinco anos em construção acaba por ser ainda pior porque é dividido numa primeira parte de discussão sobre o conhecimento mais atual das neurociências que, segundo Sapolsky, suportam a ideia, mas depois abre toda uma segunda parte de discussão sócio-político-filosófica para a qual o autor claramente não tem competências.

Começando pela primeira parte. Sapolsky diz-nos que não existe livre-arbítrio porque não é possível encontrar o neurónio, ou grupo de neurónios, que produz a ordem original. Ou seja, quando alguém puxa o gatilho de uma arma, aquilo que conduziu ao ato de puxar o gatilho depende de um conjunto enorme de variáveis que condicionam a pessoa a agir daquela forma. Segundo Sapolsky, ninguém é responsável por matar outra, são as condições que o moldaram — dos genes desde o início da espécie ao ambiente em vive — que o levou ao apertar do gatilho.

Ora isto é completamente ridículo, mas não surpreendente em Sapolsky, um behaviorista convicto. O que ele está a fazer aqui é assumir que a Cognição Humana funciona tal e qual a Fisiologia, algo que foi defendido por BF Skinner nos anos 1950, e acabou sendo refutado pelas Ciências Cognitivas. Por outro lado, demonstra o problema do excesso de racionalização do mundo por parte da ciência. Quando tentamos tudo perceber, porque tudo queremos explicar, procuramos a justificação causal de tudo, não o conseguindo, simplesmente assumimos as explicações a partir da reduzida parte do que conhecemos.

A questão que se tem de colocar é, apesar de os neurónios serem condicionados pelos genes e pelo ambiente, a ordem para os colocar em marcha passa inevitavelmente pela Mente. A mente não é nenhum espírito, não é nenhuma alma, como Sapolsky quer atirar para areia dos olhos dos leitores. A mente existe e é um processo constituído por estados Conscientes e Não-Conscientes, sendo os primeiros caracterizados por experiência fenomenológica enquanto os segundos acontecem na sombra, ou seja, não acedemos à experiência dos mesmos, nem tão pouco conseguimos representá-los, mas estes impactam os processos que ocorrem na consciência. Esses estados podem ser categorizados de muitas formas, sendo relevante para aqui pelo menos três grandes categorias: a cognição (perceção, atenção, processamento de informação e memória), a emoção (sentimentos positivos e negativos) e ainda a motivação (desejos e objetivos de aproximação e evitamento).

Sapolsky evoca os estudos iniciados por Libet nos anos 1980, que alegadamente demonstram que a tomada de consciência num processo de escolha entre apertar um botão Azul ou um botão Vermelho, acontece quase 1 segundo depois de os neurónios terem tomado essa decisão. A partir deste, centenas de outros estudos têm alegadamente demonstrado em múltiplos cenários, nalguns extremos, que os neurocientistas conseguem chegar a prever com 10 segundos de avanço sobre as próprias pessoas, a decisão que estas vão tomar, analisando apenas o estado de prontidão neurónios. Para Daniel Dennett, e outros, este experimento é em si inconsequente, porque a medida da tomada de consciênca pelo neurocientista é aferida pela linguagem do sujeito. Ou seja, não se está a comparar o momento em que os neurónios são ativados como o momento em que o sujeito ganha consciência da decisão, mas sim com o momento em que o sujeito relata que decidiu. Isto porque o único método que temos para aceder à consciência do sujeito, é o seu relato. O problema é que a linguagem é um processo em si que tem de ocorrer depois da toma de decisão, naturalmente atrasando tudo.

Contudo, vou mais longe, e admitindo que existe um desfasamento, não vejo este como representativo de nada, simplesmente proque não tomamos decisões apenas com base em processos conscientes. É simplesmente impossível, pelo facto de que a nossa capacidade para manter elementos presentes no modo consciente é imensamente reduzida. Repare-se que não conseguimos reter mais do que 5 a 6 números de cada vez, mas o nosso não-consciente consegue reter centenas de números de telefone que contém 9 elementos cada.

Ou seja, num processo de decisão, precisamos sempre de estabelecer diálogo entre o consciente e não consciente, sendo natural que o não-consciente chegue a uma determinação da mesma de forma mais rápida, porque acede ao todo, podendo desde logo iniciar a ativação neuronal ao mesmo tempo que prepara a informação para ser representada no nosso consciente.

Usando um exemplo que gosto muito de usar em estudos, a cena final do filme “Seven” (1995), em que Brad Pitt, na pele de um detetive, aponta uma arma ao serial killer interpretado por Kevin Spacey. Pitt tem arma apontada apenas para evitar que Spacey não faça algo inesperado, entretanto o colega, Morgan Freeman, traz para a cena uma nova informação, a de que Spacey assassinou a mulher de Pitt, e que ela estava grávida. Os espectadores são colocados na pele do detective, cientes da informação que acabou de entrar, interrogando-se o que ele fará, mas interrogando-se o que fariam naquela situação. O puxar do gatilho não é definido apenas por quem ele é, embora também. Mas é definido por quem ele decide que quer vir a ser, e é aqui que Sapolsky perde, porque os neurónios e restante maquinaria não querem saber do futuro Eu, isso está dependente da Mente.

Repare-se como nesta cena, o facto da informação entrar em cena no minuto final altera totalmente o processo de decisão. O fim da cena seria totalmente diferente sem aquela informação naquele momento. Essa informação altera o facto de que até àquele momento o detetive não teria disparado nunca sobre aquela pessoa, mas a entrada daquela nova informação criou as condições para que tal acontecesse. Ou seja, ao contrário do que Sapolsky diz, no detetive nada estava determinado a matar o serial killer, se a informação tivesse chegado mais tarde, ele não o teria matado, porque a mente não teria oferecido essa possibilidade.

Podemos aprofundar a análise do que se passa naquele momento usando o modelo de cognição de Daniel Kahneman, dividindo a reação do detetive em duas possibilidades. Na primeira, usando o Sistema 1 de processamento rápido, intuitivo e emocional. Na segunda, o Sistema 2, lento, deliberativo e lógico. No caso do primeiro sistema, estamos no reino de Sapolsky, em que a reação não chega à consciência, é processada por via dos automatismos providenciados pelos genes e experiência. Nesse caso, Sapolsky pode dizer que ele não escolhe puxar o gatilho, mas antes é condicionado a fazê-lo pela sua história e emocionalidade. Contudo, não podemos dizer que é isso que aqui acontece porque ocorre uma inevitável ponderação das variáveis de informação. Repare-se que dizer que ele não processa a informação é uma falácia, pois se não processasse não entenderia que a mulher grávida tinha morrido. Estamos a falar de processar linguagem simbólica, traduzir a mesma em dados internos e relacioná-los com memórias e emoções, algo bem diferente de estar ao lado do corpor no momento em que este é assassinado, acedendo via experiência sensorial ao todo. Assim, existe não só todo um processamento do bocado de informação, como sabemos que é essa que despoleta a ordem que tudo coloca em marcha na mente e no corpo.

Deste modo, os neurónios que se ativam no cérebro e podem ser vistos ativos pelos métodos das neurociências, preparando-se para dar a ordem ao dedo que puxa o gatilho, são efetivamente estimulados por esta informação. Mais, os métodos de Libet podem até conseguir aferir que Pitt decidiu apertar o gatilho antes de ter consciência do mesmo, mas isso é totalmente irrelevante, porque isso não torna a decisão menos sua. O nosso Eu é feito de consciente e não-consciente, e a nossa vontade é produzida com base numa racionalização do momento que é continuamente contrastada com as racionalizações passadas presentes na memória no não-consciente. É por isso que um jogador de xadrez experiente têm mais hipóteses de ganhar, porque no seu não-consciente, existem centenas de decisões que já realizou ou imaginou realizar, conseguindo antecipar resultados e assim acelerar a sua decisão consciente.

Voltando a “Seven”, repare-se como a informação recebida pelo detetive, ativa todo o não-consciente onde estão as representações da sua esposa, mas ativa todo o consciente evocando de imediato todas as suas funções executivas que lhe permitem no momento tentar adaptar-se à nova informação, acionar processos de inibição e regulação da sua emocionalidade, mas mais importante, planear o futuro para poder ver como seria um filho ou filha seu, assim como como será a sua vida sozinho, ou ainda evocar colegas que perderam esposas, filhos, que assasinaram criminosos, etc. Tudo junto, concluirá o que só ele pode concluir, porque mais ninguém possui o seu sentido de Eu, para decidir: não fazer nada e abandonar a cena; matar o outro; não matar o outro; matar o outro e a si mesmo; ou matar-se apenas a si.

Ou seja, uma decisão processada por um humano não é um mero automatismo pré-desenhado para reagir de determinada forma, antes é um processo que atravessa muitas escolhas até ao ponto final. E é-o porque aquilo que o ser-humano faz todos os dias, desde que nasce, é exercitar a sua Mente por via da aprendizagem sobre as consequências de cada ato. Se o corpo pudesse ditar tudo o que fazemos independentemente da nossa mente, então todo o esforço com a Educação seria tempo perdido.

A segunda parte do livro é dedicada a discutir o modo como a sociedade funciona e pode funcionar perante o reconhecimento da ausência de livre-arbítrio. Se a primeira parte apresenta os problemas de não reconhecimento da psicologia cognitiva, e dos processos mentais, na segunda parte Sapolsky ignora todo um mundo de conhecimento sobre a formação de comunidade e sociedades, sua organização política, mas acima de tudo de discussão sobre os processos de racionalização das mesmas.

Nesta parte, começa por defender que o reconhecimento pela sociedade da não-existência do livre-arbítrio não tem que ser um problema, ou seja, que as pessoas não se comportariam de modo amoral, como alguns estudos que ele próprio cita demonstram, simplesmente porque segundo Sapolsky podemos usar o comparativo com a diferença entre Religiosos e Ateus. Se os ateus conseguem viver bem sem Deus, então também conseguiremos viver bem sem livre-arbítrio. Ora, o problema é que viver sem Deus é uma questão pessoal. Viver sem livre-arbítrio é uma questão social. Numa sociedade que não acreditasse no livre-arbítrio, não faria sentido a Religião, mas mais impactante do que isso, não faria sentido a Justiça. Todo o edifício que suporta a convivência social e permitiu que as civilizações evoluíssem ruiria. Mas para Sapolsky basta convocar a ideia de que a punição é um mero sentimento de vingança e que este é totalmente inconsequente, para acabar com a necessidade de um sistema de justiça. Para quê punir, se quem fez mal não o fez por mal mas apenas porque assim a sua biologia o determinou?

Diga-se que a ideia que suporta esta abordagem tem alguns traços de consistência. Quando Sapolsky evoca a condenação que até há pouco se fazia de pessoas com esquizofrenia, porque não percebíamos o que era. Quando até há pouco não compreendíamos as limitações de alguém com Autismo, com ADHD, com Dislexia, etc. Ou quando, ainda teimamos em não compreender que os metabolismos não funcionam de forma igual, logo não se pode exigir que todos sejam magros e “elegantes”. Ou seja, para Sapolsky a espécie humana está totalmente condicionada pela sua biologia, acreditando que à medida que formos obtendo mais conhecimento sobre o funcionamento desta, mais nos iremos aproximar da ideia de que todos nós somos apenas fruto dessa biologia, e por isso não podemos ser responsabilizados por nada.

Ora pegando no exemplo básico do metabolismo e peso, sendo verdade, e tendo nós pleno conhecimento científico sobre o modo como algumas hormonas nos condicionam, tal não deixa de convocar os nossos sistemas cognitivos exatamente para controlar a nossa biologia. A urgência de comer um doce, provocada pelo meu corpo, pode ser controlada pela cognição que compreende que essa urgência é um mero automatismo fisiológico, e que deve ser ignorado. Tal não é fácil, de todo, mas não só é possível, como é realizado todos os dias por milhões de humanos. Basta pensar que vivemos um momento civilizacional de sobreabundância, nas sociedades ricas, de comida e estímulos (açúcar e sal), e que se não conseguíssemos realmente exercer qualquer livre-arbítrio, se fossemos meros escravos do corpo, não conseguiríamos parar de comer.

Reconhecendo que a nossa mente tem poderes limitados para controlar o nosso corpo, o que me irrita mais em todo este livro é saber que Sapolsky também sabe disso, mas mais problemático, sabe também que isso não invalida que a mente não tenha a sua quota parte de responsabilidade e capacidade de contribuir para as decisões. Somos feitos e moldados por uma luta contínua entre aquilo que o nosso corpo demanda e aquilo que a nossa mente acredita que deve ser feito, momento a momento. Concordo com Sapolsky que somos fruto das condições externas que condicionam o nosso corpo, mas não só, porque nada disso funciona numa direção apenas. Existe uma relação forte de interação, de conversação contínua, entre o meu Eu, o meu corpo e o mundo em que vivo. O mundo condiciona-me, mas eu também condiciono esse mundo. Ou seja, no final, fico com a ideia que Sapolsky resolveu defender esta perspetiva extremista apenas porque defender um ponto do meio não geraria novidade, nem interesse em quem o ouve.

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