A Guerra Não Tem Rosto de Mulher

Ao terceiro livro — depois de “Vozes de Chernobyl” (1997/2013)“O Fim do Homem Soviético” (2013) — a técnica de escrita de Svetlana Alexievich não cansa, antes pelo contrário, torna-se parte dos modos discursivos que nos habituámos a utilizar para aceder ao mundo. A pouco mais de meio deste “A Guerra Não Tem Rosto de Mulher” (1983/2002) pensava no quanto gostaria de ler algo assim escrito nos anos 1500, em Itália, acedendo às vozes daqueles que viveram no tempo dos Médici, Michelangelo ou Da Vinci; ou nos anos 0, para ter acesso ao sentir dos súbditos de Augusto e Marco Aurélio; nos anos -300, na Grécia, para conhecer os impactos da democracia e da ciência de Aristóteles; ou ainda a -800 para ouvir as vozes daqueles que se dedicaram a decorar e a contar oralmente as histórias de Homero. 

Este livro de Alexievich oferece-nos uma visão muito clara de algo que até aqui me parecia bastante nebuloso, a presença das mulheres na guerra. A história de sempre mostra a guerra como território masculino, repleto de testosterona, com as mulheres na retaguarda a tomar conta das crianças e dos idosos. Contudo, este livro torna bem claro que a guerra faz-se com todos, nomeadamente quando esta assume a violência incomum de uma Segunda Grande Guerra. Confesso que a minha curiosidade por este livro se centrava numa expectativa que sai totalmente gorada. Acreditei que o título deste livro se referia a algo totalmente diferente. Que o facto de a Guerra não ter um Rosto de Mulher se referia ao facto de as mulheres serem diferentes dos homens, e que provavelmente com elas no comando de nações guerras como estas nunca aconteceriam. Que a sua sensibilidade impediria a brutalidade das carnificinas perpetradas. Mas estava completamente enganado. A guerra não é feita por homens, nem é feita por mulheres, a guerra está na essência dos instintos da espécie humana. É bruta, é feia, é estúpida, cega homens e mulheres.

” Antes da guerra (cresci numa família de músicos), gostava de música alemã: Bach, Beethoven. O grande Bach! Risquei isso tudo do meu mundo. Vimos mais tarde, mostraram-nos os crematórios… O campo de concentração de Auschwitz… Montanhas de roupas de mulher, sapatinhos de criança… Cinzas… Adubavam hortas de repolhos com elas. De alfaces… Já não podia ouvir música alemã… Muito tempo passou até voltar a Bach. Até começar a tocar Mozart. 

Finalmente, estamos na terra deles… A primeira coisa que nos surpreendeu foram as estradas em boas condições. As grandes casas camponesas… Vasos de flores, cortinas bonitas nas janelas, mesmo em celeiros. Nas casas, toalhas de mesa brancas. Louça cara. Porcelana. Pela primeira vez, vi uma máquina de lavar roupa… Não conseguíamos entender: para que precisaram de fazer a guerra, se viviam tão bem? O nosso povo está metido em abrigos subterrâneos, eles têm toalhas de mesa brancas. Café em pequenas chávenas… Só as vi no museu. As chávenas…

Ao longo das 400 páginas temos acesso a centenas de pequenos relatos de mulheres soviéticas que combateram os alemães de Moscovo a Berlim. Neste podemos compreender o que as levou à guerra, da obrigação ao dever, da solidariedade à solidão, da depressão ao desespero. Podemos também aceder ao modo como foram recebidas na frente, da desconfiança à suspeita, do descrédito à aceitação, da humilhação ao enaltecimento. E se custa ler sobre os embates com as forças inimigas, as brutalidades já conhecidas do nazismo, não menos me custou ler como eram depois recebidas estas mulheres, aquelas que sobreviveram, ao chegar às suas terras, dando conta da mais profunda e enraizada misoginia. 

“Como é que a nossa Pátria nos recebeu? Não consigo falar disso sem soluçar… Passaram-se quarenta anos, mas as faces ainda me ardem. Os homens não diziam nada, mas as mulheres… Gritavam-nos: «Bem sabemos a que se dedicaram lá! Seduziam os nossos homens com as vossas jovens conas… Putas da frente… Cabras de trincheira…» Ofendiam-nos de todas as maneiras possíveis… O vocabulário russo é rico…”

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