Cristalização Secreta, de Yoko Ogawa

O livro “A Polícia da Memória” de Yoko Ogawa começa por ler-se como metáfora dos regimes autoritários, nomeadamente URSS e China, aproximando-se muito das distopias baseadas em “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro”. Contudo, à medida que vamos lendo e entrando pelo mundo apresentado, vamos percebendo que existe aqui algo mais próximo da fábula. É de memórias que se trata, o último reduto de salvaguarda da nossa identidade, e o que aqui se relata é sobre o seu desaparecimento. Ora, não estamos apenas frente a um estado que obriga ao desaparecimento e condicionamento das pessoas que teimam em manter as memórias, já que a grande maioria das pessoas vai perdendo as faculdades de se lembrar, de recordar, criando, como diz uma das personagens, “buracos no coração”. O âmago assenta assim numa perda do Eu.

O livro é bastante simples, com uma história contada sem grandes artifícios, totalmente focada no que quer ilustrar para construir um conjunto de sentires no leitor. Percebe-se assim que apesar de só agora publicado no ocidente, o livro data a sua primeira publicação no Japão em 1994. Não deixa de ser relevante também referir que o título original é particularmente mais próximo do que realmente está aqui em questão, “Cristalização Secreta”, ou seja, um acontecimento interior humano, e não uma mera imposição externa.

Se o desaparecimento das memórias evoca nos dias de hoje o Alzheimer, o desaparecimento de interesse pela realidade evoca um efeito natural do nosso envelhecimento. Porque se o livro relata a perda das memórias e os seus efeitos, a história foca-se mais nos esforços realizados para manter essas memórias vivas, o que acaba por mudar o foco do mero desaparecimento para a manutenção do interesse humano. À medida que vamos vivendo, e vamos experienciando a realidade repetidas vezes, vamos perdendo o interesse em muitas coisas à nossa volta. É fácil notar isto naquilo que antes nos dava um prazer estonteante, e hoje já nada nos diz. O livro usa do esforço de repetição de contacto, assim como do incentivo externo à manutenção dessas memórias, mas tudo isso embate contra algo muito mais profundo, a curiosidade humana. Sabemos que a curiosidade é central para nos fazer mover no mundo. Sem curiosidade não temos razões para ir atrás de nada além da mera necessidade de sobrevivência. Mas continuamos sem perceber de que é feita, em particular como se ergue dentro de nós, como cria esta fome por criar novos mundos, novas realidades, novas partilhas com o outro… e não deixa de ser assustador perceber que esta curiosidade que nos alimenta tende a decrescer, podendo mesmo chegar a abandonar-nos.

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