O Colibri, livro e filme

O caso raro em que o filme supera o livro.

Uma história belíssima, para uma narrativa frágil ainda que experimentalmente atrativa. Temos uma história coming-of-age que sempre nos emociona, passada numa bela Itália da segunda metade do século XX que serve no intensificar da nostalgia. Toda essa história está repleta de pequenos elementos, acontecimentos, parte do atravessar de uma vida que nos marca e dá conta da beleza e esforço de se estar vivo. Contudo, a construção narrativa fica aquém, porque tudo é feito a correr, com muito poucas páginas para tanta vida, não havendo espaço para o aprofundar e evoluir do espaço-tempo nem do interior dos personagens. Por outro lado, a narrativa é trabalhada em dezenas de fragmentos, espalhadas no tempo, que acabam tornando a leitura num puzzle bastante envolvente.

— Para vocês, psicanalistas. Para vocês não é tudo útil, verdades e mentiras, etecetera, etecetera?
— Quem é que diz isso?
— Pois, não sei, vocês… Os psicanalistas. A psicanálise. Não? Desde criança que vivo rodeado de gente que faz psicanálise e sempre ouvi dizer que, enfim, o setting, o transfer, os sonhos, as mentiras, tudo tem a sua importância, precisamente porque revela a verdade que o paciente esconde. Ou não? Qual é o problema, então, se a Marina inventou alguma coisa?

Sandro Veronesi

No filme, de Francesca Archibugi, pela natureza do medium, acabamos tendo acesso a um muito maior detalhe do espaço-tempo, assim como através da performance dos atores (Pierfrancesco Favino, Nanni Moretti, Bérénice Bejo) acedemos a camadas psicológicas muito mais densas. Apesar dos diálogos se manterem quase inalterados, a plastificação oferecida pelos atores incrementa tremendamente o alcance do discurso. A fragmentação narrativa, constantes saltos no tempo, mantém-se, mas é menos relevante, já que a abandona o foco nos eventos para se centrar nas personagens, e as personagens simplificam a passagem de tempo ilustrando-a com alterações fisionómicas (roupas, cabelos, modos de andar e falar). A história ganha assim uma narrativa audiovisual que ombrea em profundidade, fazendo elevar o todo a objeto comovente.

Quanto à história, dá conta de uma personagem particular que ao longo da vida vai encontrando os maiores conflitos externos e internos, não permitindo nunca que estes o demovam da pessoa que é. A metáfora do colibri advém pelo facto de estes serem uma espécie que não migra, que tende a manter-se no mesmo sítio, suportado pela particularidade de serem a única ave que consegue voar para a frente e para trás. É inevitável sentirmos frustração com Marco Carrera que nunca desiste, nunca deixa de acreditar nos outros, nunca altera o tom, mas simultaneamente faz-nos recordar tantas vezes em que fizemos o mesmo, e em que nos recriminámos por não reagir. Ao tocar-nos, vai mais fundo, e obriga-nos a questionar se a mudança não é mais do que uma obrigação imposta pela cultura, se somos o que somos, e assim deveríamos permanecer.

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