De Rashomon a Confiança

“Confiança” de Hernan Diaz ganhou o Pulitzer 2023 e foi nomeado para o Booker 2022, para além de ter tido direito a análises na maior parte dos jornais internacionais de referência, assim como nalgumas revistas académicas. Deste modo, a leitura inicia-se condicionada, mesmo sabendo pouco sobre aquilo que o livro trata, sabemos que algo de particular tem de existir para conseguir chegar a tal patamar de reconhecimento. Serve isto para dizer que tenho vindo a sentir que as expectativas elevadas acabam por perturbar a minha experiência da leitura. Neste caso em particular, se nada soubesse sobre “Confiança”, acredito que a obra me teria surpreendido, e provavelmente, me teria tornado em mais um dos seus defensores. Por outro lado, sem toda a discussão em redor da obra, é muito provável que nunca tivesse chegado ao livro, e se tivesse, teria desistido no final do primeiro quarto de leitura tendo em conta a temática. No fundo, temos aqui uma obra que nos delicia pela estrutura, mas nos enfada pelo assunto.

Vou falar da estrutura e tema, por isso fica o aviso para quem não leu.

Começo pelo assunto, a riqueza criada através do jogo de ações em Wall Street, um assunto que não me podia afastar mais. Se há algumas décadas ainda conseguia seguir e até gostar de obras como “Wall Street” (1987) de Oliver Stone, depois da crise de 2008 deixei totalmente de aceitar, e por isso permitir-me perder tempo com figuras e histórias emanadas desse mundo de excessos que todos procuram de algum modo racionalizar. Esta minha reação é tão forte que em 2013 deixei pela primeira vez a meio um filme de Martin Scorsese, “The Wolf of Wall Street”. Assim, no final do primeiro capítulo, de quatro, a minha vontade era claramente de atirar o livro pela janela fora. Mantive a leitura, pela expectativa de que teria de haver algo mais.

Na verdade, a estrela da obra não está no tema, mas na estrutura que segue exatamente a mesma estrutura de “Rashomon” (1950) de Akira Kurosawa, que é uma adaptação de dois contos de Ryūnosuke Akutagawa, “Rashomon” (1915) e “In a Grove” (1922). Assim temos a mesma história apresentada a partir de 4 perspetivas diferentes, que obrigam o leitor a recriar mentalmente o mundo apresentado a cada nova perspetiva introduzida. Se em Rashomon as 4 versões incidem sobre um possível ladrão, que vai cambiando de pessoa de bem a pessoa de mal, ao longo das várias versões. Em “Confiança” temos um corretor de bolsa que inicia apresentado como um génio das finanças, sobre o qual vamos descobrindo mais e mais sobre a relação com a sua esposa, até percebermos que era ela o génio e ele um mero ladrão sem escrúpulos.

A inovação de Diaz assenta no uso de quatro registos discursivos totalmente distintos em termos expositivos — (1) um romance biográfico, (2) uma autobiografia inacabada, (3) um livro de memórias, e (4) um diário. Acaba sendo esta variação de discurso e ponto de vista que torna o livro interessante, ainda que Diaz abuse da paciência dos leitores, nomeadamente com a introdução da autobiografia inacabada que repete muito daquilo que está no romance biográfico inicial. Na verdade, só começamos a perceber o que está a acontece com o início do terceiro livro, e é aí que realmente a nossa curiosidade é atiçada, pois entramos em contacto com o ghostwriter de autobiografia, e começamos a perceber os detalhes que a separam do romance biográfico. No final, como cereja, é apresentado diário perdido da esposa, que aparenta quere repor toda a verdade, mas tendo toda a verdade sido até ali toldada, torna-se difícil, e é esse o objetivo do livro, aceitar como verdade algo dito na primeira-voz.

Tendo já referido os potenciais motivos para algum desligamento da minha experiência de leitura, não quero, contudo, deixar de referir que o meu sentimento maior sobre toda a obra define a história como demasiado superficial. Isto é particularmente relevante no primeiro livro, que na forma é belíssimo, sendo impossível parar de ler, mas no conteúdo é tão banal a ponto de nos incomodar estarmos a perder tempo a ler algo assim. Nas múltiplas críticas encontrei referências a Henry James, Scott Fitzgerald ou Balzac. Aceito, particularmente Scott Fitzgerald, mas Balzac só na aparência, já que falta todo um aprofundamento psicológico que nunca chega a acontecer. O livro passa demasiado tempo com o Andrew Bevel, o corretor de bolsa, dando muito pouco espaço à mulher, que se vinga no final com o diário, mas na verdade somos brindados quase exclusivamente com aquilo que eles pensam sobre si, e pouco sobre aquilo que os outros pensam deles. Aliás, não é por acaso que o melhor do livro é exatamente a terceira parte, em que temos a dactilografa, ghostwriter, a dar conta do modo como concebeu a autobiografia de Bevel.

Uma última nota, apesar do tema, acabei descobrindo alguns detalhes mais sobre a Grande Depressão de 1929, e anteriores, que me surpreenderam, e acabam a conferir uma relevância histórica ao relato do livro.

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